terça-feira, dezembro 30, 2008

Última dança


Ela dançava, abraçada a ele, num ritmo lento e cadenciado. Dançava embalada por dentro. Dançava com a alma que dançava também, com o corpo que entorpecia e dançava também, com a ternura que a embalava e ao seu coração também. Dançava de encontro ao corpo dele como se fosse essa a primeira vez a sentir o seu toque. O calor da sua pele e a música que entravam nela, assim, sem pedir licença, invadiam os seus sentidos e ela ficava suspensa no momento que parava por dentro. O momento que a segurava por dentro e a deixava respirar a custo. Ela dançava encostada ao corpo dele, quase dentro dele, como que absorvendo o seu interior, como que lhe roubando a alma num sopro, roubando o sangue que lhe corria nas veias de um trago. Encostada a ele abraçada a ele, pendurada no seu pescoço, embrulhada no seu calor, presa ao ritmo do seu coração, do coração dele e dela. O coração dos dois batia como se fosse só um, pois ela acertara o seu coração pelo coração dele, com a sofreguidão da morte, ou da vida, com a sensação de derradeiro esforço para o ter, mais uma vez. Dançava como se aquele fosse o último movimento que o seu corpo conseguia fazer, como se aquela fosse a única dança que ela conseguia dançar, que as suas pernas lhe permitiam dançar. Dançava sem sentir os movimentos dos músculos, das articulações, o correr do sangue nas veias, nos tecidos, nos órgãos. Dançava uma dança etérea. E diáfana era também a música que os envolvia, que os unia, que os juntava, assim, pela última vez.
Esperara por aquela dança com um sabor a mel amargo na boca, porque sabia que não teria mais nenhuma oportunidade de voltar a estar assim. Em breve, ele partiria. Em breve, a música desmembrar-se-ía e o que restaria seria o som oco do bater solitário do seu coração. O coração abandonado a ele, abandonado por ele. Seria esse sinal último de vida. Seria esse o último reduto de existência.
Existência. Ou vida? O que levas de mim? Existo, vivo, ou respiro apenas? O que me resta? O que fica em mim? O que fica de mim?
Esperara por aquela dança como uma sentença. Sabia que ela viria, inexorável, última, perpétua, fatal. Sem hesitar, entregou-se a ela. Sabia que seria o momento em que o laço se iria desfazer, em que a entrega não tinha mão a receber e ficaria no ar, suspensa, parada, detida no ar. Sabia que essa mão regressaria vazia a si. Para sempre vazia. Sabia que era necessário fazer o que tinha de ser feito. Sabia que esse era o momento de partir. Partir-se, cortar-se, cortar com o que a deixava sem chão.
Ele iria embora, regressaria para quem nunca devia ter deixado.
Ela sempre soube disso. Sempre reconhecera o fim inevitável de algo que nunca devia ter começado, pelo menos para si. Para ela, aquele não devia ter sido o princípio de nenhuma história. Aquele capítulo devia ter passado e avançado para um outro, ainda que solitário, que ao menos não lhe levasse a alma. Um capítulo vazio, sim, que importa, se estivesse em branco? Que importa se nada fosse escrito? Que importa que não se falasse daquela dança? O que ela desejava era não ter que deixar de escutar a música. A música que estava quase a terminar, a melodia inebriante que a traz presa a ele, rendida a ele, dependente dele, suspensa nele. Deteve-se no compasso do corpo dele e compreendeu que iria cair, que iria afundar-se nos despojos daquela última dança. Compreendeu que fatalmente ficaria adiado o momento seguinte, em que teria de respirar sozinha. Percebeu que a música terminara, que o seu corpo estava, agora, desprendido dele, de tudo o que ele representava, de tudo o que ele lhe tinha dado e retirado, de tudo o que conhecera com ele. A música terminara e estava, finalmente, livre…

Filipa
29 Dezembro 2008

5 comentários:

Anónimo disse...

Filipa,
Esta última dança está soberba!
E quando leio algo muito bom, fico sem palavras … é um bug qualquer que tenho com certeza, mas pode ser que um dia destes saia um novo patch para upgrade :o)))

Assim sendo, deixo-te aqui um excerto da Margarida Rebelo Pinto, que muito tem a ver com o que escreveste, e que tal como tu também é fantástica no que diz respeito a escrita!
“Levar com a porta na cara dói muito. Dói sempre, o dia inteiro, a todas as horas e a todos os minutos. Dói tanto que os segundos se podem tornar insuportáveis e os dias facilmente se transformam em epopeias, viagens trágico-marítimas. Dói de manhã, assim que regressamos do abençoado estado de inconsciência em que o sono nos guarda, quando olhamos para o lado e perguntamos: e agora? Dói quando olhamos para o espelho embaciado onde existem os fantasmas de frases de amor escritas com a ponta dos dedos. Dói quando nos lavamos, quando comemos, quando engolimos, quando respiramos, quando falamos, quando ouvimos, quando pensamos. Dói um bocadinho menos quando nos rimos, quando os amigos nos abraçam, quando a noite cai e os filhos nos protegem.
Mas o que mais dói é saber que alguém que ainda amamos, por medo e por sofrimento, nos fechou o coração. O som é igual ao de mil tambores em fúria: não vale a pena falar, não vale a pena escrever, não vale a pena tentar chegar ao outro lado, saltar o muro, enviar emissários, içar bandeiras, fazer cimeiras, apanhar aviões e levar na mão o nosso coração como presente porque ele já não o quer. Quando o outro coração se fecha, deixa de ser nosso…"
Beijinhos,

Claudia disse...

Mas que dança magnífica... esta última com que nos presenteaste para fim de ano!
Fiquei sem fôlego de a ler e reler. É urgente escreveres, escreveres mais e mais...
Não podes deixar este talento apenas neste simples espaço.

Anónimo disse...

Obrigada Mimi!
Obrigada Cláudia, mas este é o meu espaço, por enquanto!... Este "simples espaço" é a minha casa!

Beijinhos às duas flores deste jardim!

Anónimo disse...

Um texto de uma beleza sublime, bem ao jeito de quem escreveu.

Comentar? Palavras!!! Quais?

Apenas dizer que o talento desta escritora, deve ser divulgado, para que mais pessoas, possam beber o néctar que esta GRANDE SENHORA, tem para nos dar.

Anónimo disse...

Peter Pan...

Um beijinho e votos de um Excelente ANO NOVO!