terça-feira, setembro 25, 2007

Hoje estou melhor...


Os olhos húmidos, as mãos calejadas e frias, a pele baça e branca, a boca seca...
"Tenho frio nos pés. Calças-me umas meias?" Levantei o lençol e calcei as meias. Os pés gelados e ásperos. O lençol branco, as paredes brancas, as caras brancas....
Os últimos raios de sol penetram pela janela. Tons de amarelo pintam o quarto do hospital. Chegou a hora de conhecer o desespero de não saber o que fazer, da total impotência perante a doença, perante o bicho que corrói e mortifica. A esperança ainda luta para vir ao de cima.
"Pode ser que não tenha metástases. Pode ser que fique bom..." Sussurram-se previsões.
A lembrança do que passou serve para alimentar as tuas horas, para ajudar a passar os minutos. O que recordas enquanto aí estás deitado? Que passagens da vida te fazem agarrar à vida? Os tempos de criança, os namoricos e aventuras de solteiro, a vida de casado, o nascimento dos filhos, a última visita da mulher?...
"Era melhor que cá não viesse. Para sair logo a correr, era melhor não ter vindo. Não precisas de vir mais, estive quase para lhe dizer..."
E há um abismo entre eles. Não um fosso, nem sequer um muro. Há um mar infinito, um abismo imenso que os separa. Nem mesmo na dor os corações se unem. O que poderá dividir tanto, o que poderá originar tanto ressentimento, tanta mágoa, tanto rancor dissimulado em gestos secos e olhares de reprovação?
Arranjo os tubos para que se possa voltar um pouco.
"Dói-me tudo. As costas, a barriga, as pernas... Disseram-me que não posso comer. Tenho tanta fome. Ainda bem que vim a tempo. Ainda bem... Se esperasse mais, podia ter morrido..."
Ainda bem que aqui estamos todos, para podermos também ainda emendar alguma coisa, sanar algum mal, aconchegar os lençóis, molhar os lábios, contar uma piada, falar de trivialidades (do campo, dos animais, do trabalho, do trânsito para chegar e para voltar, do futebol, do apetite voraz que tinha quando era mais novo e tudo lhe sabia bem, dos intermináveis dias em que trabalhava e nunca folgava para ganhar mais)... Tudo é um bom tema para conversar "porque hoje já não estou tão cansado... Hoje estou melhor..."

2 comentários:

Claudia disse...

Quem nos vê por cima de nós? Muitas vezes questiono isso... Quando o que sinto não é compreendido pelos que me rodeiam pergunto se estará alguém a ver-me.
Mas agora a perspectiva mudou-se e queria ser eu a ver o que vai no coração dos que amo.
Queria poder dizer que estou aqui ou ali... onde o coração se sentir melhor.
Queria poder fazer sentir que seja lá o que estiver a acontecer estamos juntos. Podemos recolher as nossas almas num sitio só. E ficar todo o tempo que for preciso até novas forças voltarem.
Perceber o passado, entender o presente... não sou capaz. Agora sou apenas capaz de sentir.

Claudia disse...

Afinal foi apenas um aviso... uma lembraça do que podemos ser. Da nossa fragilidade! A sensação é incrível... podemos ainda vencer e viver... precisamos de saber como o fazer