domingo, janeiro 25, 2009

Registo


Ela estava só naquela noite escura. Escura e quente, abafada, trôpega, deserta. A noite sem as estrelas que costumava ver da sua varanda, sempre que o ar lhe faltava e procurava a magia da rua deserta à noite, na noite de insónia que a avassalava e encolhia por dentro, ultimamente.
Regressara a casa há dez minutos. Vazia. As mãos dele tinham estado nela sofregamente, sem perguntas, sem respostas, sem questões, sem amor. Nela havia a certeza de que nada lhe havia sido retirado, nada lhe havia sido dado também. Nada. E era bom. Sentia-se bem assim. Nada a prendia, nada a consumia, nada lhe dava vida, nada a matava. Olhou para ele e sentiu o prazer que lhe dava aquele vazio. Olhou o seu rosto brando, os olhos parados nos dela, o sorriso cálido e sem nexo. Sorriu também para ele. Nada lhe disse. Mas sentiu-se feliz. Gosto de ti, gosto muito de ti. Disse ela, por fim. E ele sorriu também. Não percebeu porque ela dissera tal coisa. Nem porque lhe passara a mão no rosto enquanto lho disse, percorrendo com o dedo indicador os seus lábios, os seus olhos, as suas pálpebras, o seu queixo. Demorou-se no pescoço dele, desceu até ao peito e deteve-se. Quis ver o olhar dele, mas ele tinha os olhos fechados. Os lábios quietos. Não quis continuar. Pousou a mão na mão dele. Vou-te levar. A voz dela despertou-o da viagem afectiva que iniciara momentaneamente. Os olhos dele abriram-se. Cruzou os dedos nos dela. A outra mão abriu a janela do carro. Como queiras. Disse ele, sem a olhar. O cheiro a maresia entrou pela janela aberta e era frio o ar que entrava. Tens de ir, não é? Sim, ela tinha de ir. Para a sua casa vazia. Para o seu corpo lavado. No ar respirava-se o cheiro deles, do seu prazer recente, do seu calor desenfreado, do suor que retinham nas palavras gemidas sem nexo, com fúria, desprevenidas, destravadas.
Chegou a casa cansada. Estranha sensação de alívio. Chegava sozinha e despenteada. Sem fome, sem sede, sem vontade de nada. Pousou as chaves na mesa da entrada e dirigiu-se à varanda. Não acendeu a luz. Sorriu para o espelho reduzido, obscuro da sua sala na penumbra, brevemente iluminada pelos reclames da rua, pelos postes de luz pública. Seguiu até à varanda porque o ar lhe faltava. Porque o ar era pequeno dentro dos seus pulmões e sentia-se desmaiar. Procurava a noite que entrava pelo seu pequeno apartamento, no meio, bem no centro da cidade anónima. Procurava a pequena réstia de luz que sentia que estava na rua em frente. Olhou o casario que se erguia na escuridão, ao longe, na encosta junto ao rio e pensou que era feliz naquele momento. Pensou que nada lhe faltava, apenas um pouco de ar, naquela noite opressivamente quente. Não entendia porque lhe parecia que o ar era pouco, então. Porque era escasso o espaço que ficava no seu peito para respirar, mas era tão vasto à sua volta. Há breves momentos atrás, havia estado deitada no peito dele, quieta, sem lhe faltar nada. Sem ruído, sentira o seu coração bater em compasso com o dele. Gosto de ti, gosto muito de ti. Dissera de uma vez, olhando a boca dele perplexa. Porque lho dissera? Perguntou-se várias vezes depois, nos minutos, nas horas, nos dias que se seguiram… Nada davam um ao outro. Apenas o prazer da entrega oferecida num momento único. Apenas isso. Nada mais havia a esperar desses segundos, minutos, horas de prazer intenso e egoísta, intenso e altruísta. Tão seu, tão dele, tão de ninguém.
Filipa
3 de Janeiro 2009

3 comentários:

Anónimo disse...

Filipa,
Lembraste das vezes em que te digo que fico sem palavras?
Sem me querer repetir, essa foi mais uma dessas vezes …. ;o) Deixas-me sem pio mulher !!! :o)))
Simplesmente ADOREI !!!
PARABÉNS pela forma ímpar como aqui descreves esta realidade!
Beijinhos,

Alexandre disse...

Na solidão de um quarto de hotel na marginal, sinto o mundo desabar na praia de Carcavelos... As ondas rasgam a alma e o corpo deixa-se levar sem vontade de voltar...

É o sinal de uma escrita brilhante, que consegue despertar emoções de forma tão intensa.

Anónimo disse...

Mimi,

Obrigada!...

:)