domingo, novembro 08, 2009

A carta

imagem retirada daqui


Ela fechou a carta que demorara a escrever. Pensara cada palavra, cada sílaba, cada vírgula. Pensara cada batimento de coração que havia de colocar dentro do envelope. Lembrou as suas mãos longas que tocavam Mr. Big numa noite qualquer há muitos anos, mãos tão jovens então, as mãos e os olhos que, como escreveu Lobo Antunes, eram duas “pedras escuras guardando dentro como que um sumo de amor” e também as mãos e os olhos dele ela guardou dentro do envelope. E enquanto ele tocava naquele tempo antigo de sonhos, ficava ela a olhá-lo a cantarolar e a acompanhar com a viola o som que vinha de dentro dela e também isso ela lá guardou no envelope, junto com a carta, junto com as palavras todas pesadas na balança da emoção inexplicável do passado feito presente. Ela também lá guardou esse tempo, esse passado em forma de sorrisos e disse-lhe que era altura de respirar de novo. Disse-lhe com letras, com frases, com sílabas que era altura de respirar de novo. Disse-lhe com vírgulas e muitas reticências e pontos finais e pontos de exclamação que a carta só seria aberta por ele, quando ele entendesse que era altura. É que, para ela, seria sempre o momento certo, porque para ela a viola tocaria sempre e as mãos dele seriam para sempre aquelas, longas e belas mãos que arranhavam as melodias a medo, a experimentar o som desconhecido, naquele tempo de lembranças. Ele tinha de saber que para ela era sempre tempo e que só dependia dele e que ela esperava, esperaria… Mas, por agora, tinha de fechar o envelope, tinha de enviar a carta, tinha de respirar de novo.
E de uma vez, sem pensar mais, ela fechou o envelope, colou-o bem colado, bem fechado ele ficou e a carta seguiu a sua longa viagem até ele e ela conseguiu,finalmente, respirar de novo.

3 comentários:

Beatriz disse...

Adorei!
Beijinhos!^^

António disse...

Lindíssimo!...e não deixes nunca ser novamente sufocada..és linda.
kiss enorme

Claudia disse...

É mesmo assim... mas ao AMOR não há envolepe que o feche nem caixa que o esconda: quando está lá sente-se e mesmo que seja protegido das palavras e dos actos nunca se consegue protege-lo do sentir.
:)