Eu sabia, por mais incrível que me pudesse parecer na altura, que um dia iria ter saudades.
Saudades daquele lugar, daquele cheiro a éter pelos corredores, das batas brancas, dos olhares indiferentes, das conversas vãs pelos corredores e até do cheiro da comida insonsa.
Das horas de almoço, dos fins semanas ali passados, dos médicos, dos enfermeiros. De subir as escadas descontroladamente até ao sétimo piso, só porque não queria perder alguns minutos a espera do elevador.
De chegar sempre ofegante ao último degrau das escadas.
De optar sempre em ser assim. De só esforço físico me toldar a dor, o desespero e a angústia.
De ser como uma espécie de analgésico, de anestesiante.
De encontrar-me sempre pronta depois daquele exercício. Pronta para me enfrentar.
De me recompor, ajeitar o cabelo e entrar.
Passar as duas portas basculantes, pegar na bata, na máscara e vesti-las.
Percorrer o corredor. De já os saber de cor. De tudo estar mecanizado.
De trancar os sentimentos.
E entrar sempre com o meu melhor sorriso.
E tu, mesmo doente retribuíres. Ficares feliz por me ver. E eu também.
Nunca soube se sentias o quão feliz eu ficava por te encontrar. Creio que sim.
Para todos os efeitos tinha vindo de elevador. Era assim que gostavas que eu subisse. E eu dizia-te que sim, para te tranquilizar.
E também já almoçara antes de vir e se tinha os olhos inchados, naquele dia em particular, era apenas por ter passado muitas horas em frente ao computador a trabalhar.
Fazia-te crer que nunca chorava. Que não havia motivos para isso. Ias vencer a doença, isso tinha de ser sempre uma certeza. A tua e às vezes a minha também.
Ao longo desses quatro anos invertemos os nossos papeis.
Eu fazia o de mãe e tu o de filha. Filtrava os meu problemas. Dava-te colo, aconchego e alento. Alimentavas-te disso. E habituei-me a dar-te as mãos, abraçar-te, vezes sem conta.
Aprendi a mentir-te com uma convicção desconcertante. Desconhecia essa minha capacidade. Na altura perguntava-me se percebias.
Hoje sei que não.
O medo da doença turvava-te a visão.
Cabia-me sempre o papel de te informar do mais difícil. Havia médicos que me diziam que não tinham coragem. Ficava aliviada por ser assim. Só eu sabia adornar-te as piores notícias.
Primeiro as lágrimas, depois a aceitação e por fim um sorriso. E assim, foste sempre vencendo pequenas grandes batalhas... até ao fim.
E aí foi residindo a força dos nossos afectos, do nosso amor. Até hoje.
Aquele que eternamente nos uniu e nos solidificou...