sábado, setembro 24, 2011

Lucidez


Depois do Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago escreveu Ensaio sobre a Lucidez.
Não li o segundo, fiquei-me pelo primeiro que me perturbou bastante pela sua lucidez (!).
Apesar de não ter lido o mestre, aventuro-me a pensar sobre o assunto, a lucidez na vida e nos tropeções do dia-a-dia.
Haverá lucidez no início do Outono enquanto ainda calço as sandálias de verão e as folhas ensanguentadas já cobrem o chão nas manhãs frescas?
Haverá lucidez numa escolha de um caminho mais limpo de nuvens, mais fácil de dobrar e guardar no baú dos caminhos seguros?
Será a lucidez irmã da bonomia de um bocejo ao acordar tranquila pela manhã, com um raio de sol a penetrar num quarto só meu?
(Lucidez nas palavras directas e simples na hora da despedida… Precisa-se.)
Costumo dizer que não faço o que quero, antes faço o que está certo. Será isso lucidez? O que diria o mestre se eu lhe dissesse um dia estas palavras? Diria ele que vivo uma vida em banho-maria e pouco fértil em aventura?

Lembro-me agora do poema de Ricardo Reis:

Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-proprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Esta tranquilidade epicurista é, para mim, o expoente máximo da lucidez…

1 comentário:

António disse...

"Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente, por isso pouco sentiam. Daí a sua perfeita execução da obra de arte."-Fernando Pessoa